Neste texto elegíaco, publicado a título de posfácio ao seminário Transversal Orientations Part II (Orientações Transversais, Parte II), organizado pelo C-MAP em 2022, Daniel Lie, autore e palestrante convidade, reflete sobre a natureza não binária da vida e da morte, uma temática crucial na sua prática artística. A versão original em português é publicada junto à tradução inglesa por Alex Brostoff, professor assistente de literatura no Kenyon College.
A podridão é a presença, presentificação e manifestação de seres além-de-humanos como fungos, bactérias, larvas, insetos em um corpo orgânico. Essa presença fica evidente pela mudança e transição semântica e semiótica com o podre, por exemplo em um alimento fresco – que pode simbolizar nutrição, desejo e estímulo – em seu oposto, quando podre – simbolizando nojo, repulsa e abjeção. Vida e morte em um contínuo, duas partes integrais de um mesmo, sendo uma das possíveis diferenciações, a temporalidade. Quando podre, ativa-se a existência física e visível de outres seres, outres presentes.
Um vez ativada a podridão de um corpo orgânico, com a presença desses outres, surge a sensação de que a ação do tempo tem uma aceleração exponencial da mudança da matéria com o surgimento de odores, seres decompositores e alterações estéticas. Essas alterações também podem ser enaltecidas por conta do próprio processo de decomposição – a abjeção chama a atenção – um corpo quando sem vida se transforma em um objeto, um objeto quando em decomposição se transforma em um abjeto. A relação desses três estágios de um mesmo corpo são qualidades que criamos a partir da construção social da morte e do fim. Abjeto é dar um valor baixo, de desprezo a algo – uma relação de baixeza e uma relação social de baixeza está impregnada por processos relacionados à morte.
O estado de frescor de um corpo luta para manter sua estabilidade e durabilidade, da mesma maneira que o estado de podridão também luta para multiplicar seu processo de transmutação da matéria. Porém, ambos processos estão contidos um em outre em um looping infinito – as bactérias em meu estômago que realizam a digestão irão, no momento do meu falecimento, expandir suas ações e digerir minha própria carne; um dia, a mosca que bota seus ovos na abjeta em putrefação também vai apodrecer; um conjunto de folhas, pasto e galhos decompondo e amontoados por muito tempo possibilitam condições ideais para o desenvolvimento de uma planta crescer: Pós-Podre.
Quando observo a passagem do tempo de uma fruta fresca e madura, vejo o momento onde o estado de frescor é interrompido uma vez que a fruta se torna passada.
A palavra Passada com a temporalidade: O Passado.
Uma relação entre o significado do podre e do inconsumível: O Passado.
O que já passou, no entendimento linear do tempo, é um tempo podre?
Ao mesmo tempo, se olharmos pela perspectiva cronológica e contável, podre é o futuro, uma vez que ainda dentro de um recorte linear – passado, presente e futuro – é o “último” estágio da fruta.
Podre é futuro.
Busco uma confusão temporal e um anacronismo como possibilidade de quebrar a binariedade de Vida e Morte.
Mida e Vorte.
O que está em decomposição?
O que está estragado?
O que está deteriorado?
O que está putrefado?
Passada, Fresco, Podre
Podre, Fresca, Passado
Fresque, Passade, Podre