Mida e Vorte: o tempo podre

Neste texto elegíaco, publicado a título de posfácio ao seminário Transversal Orientations Part II (Orientações Transversais, Parte II), organizado pelo C-MAP em 2022, Daniel Lie, autore e palestrante convidade, reflete sobre a natureza não binária da vida e da morte, uma temática crucial na sua prática artística. A versão original em português é publicada junto à tradução inglesa por Alex Brostoff, professor assistente de literatura no Kenyon College.

Daniel Lie. Non-Negotiable Condition (Condição Inegociável). 2021. Vista de instalação, Metabolic Rift, 2021. ©️ Berlin Atonal. Fotografia: Savannah van der Niet

A podridão é a presença, presentificação e manifestação de seres além-de-humanos como fungos, bactérias, larvas, insetos em um corpo orgânico. Essa presença fica evidente pela mudança e transição semântica e semiótica com o podre, por exemplo em um alimento fresco – que pode simbolizar nutrição, desejo e estímulo – em seu oposto, quando podre – simbolizando nojo, repulsa e abjeção. Vida e morte em um contínuo, duas partes integrais de um mesmo, sendo uma das possíveis diferenciações, a temporalidade. Quando podre, ativa-se a existência física e visível de outres seres, outres presentes.

Um vez ativada a podridão de um corpo orgânico, com a presença desses outres, surge a sensação de que a ação do tempo tem uma aceleração exponencial da mudança da matéria com o surgimento de odores, seres decompositores e alterações estéticas. Essas alterações também podem ser enaltecidas por conta do próprio processo de decomposição – a abjeção chama a atenção – um ​corpo​ quando sem vida se transforma em um ​objeto​, um objeto quando em decomposição se transforma em um ​abjeto​. A relação desses três estágios de um mesmo corpo são qualidades que criamos a partir da construção social da morte e do fim. Abjeto é dar um valor baixo, de desprezo a algo – uma relação de baixeza e uma relação social de baixeza está impregnada por processos relacionados à morte.

O estado de frescor de um corpo luta para manter sua estabilidade e durabilidade, da mesma maneira que o estado de podridão também luta para multiplicar seu processo de transmutação da matéria. Porém, ambos processos estão contidos um em outre em um looping infinito – as bactérias em meu estômago que realizam a digestão irão, no momento do meu falecimento, expandir suas ações e digerir minha própria carne; um dia, a mosca que bota seus ovos na abjeta em putrefação também vai apodrecer; um conjunto de folhas, pasto e galhos decompondo e amontoados por muito tempo possibilitam condições ideais para o desenvolvimento de uma planta crescer: ​Pós-Podre.

Quando observo a passagem do tempo de uma fruta fresca e madura, vejo o momento onde o estado de frescor é interrompido uma vez que a fruta se torna passada.

A palavra ​Passada​ com a temporalidade: O Passado.
Uma relação entre o significado do podre e do inconsumível: O Passado.

O que já passou, no entendimento linear do tempo, é um ​tempo podre​?

Ao mesmo tempo, se olharmos pela perspectiva cronológica e contável, podre é o futuro, uma vez que ainda dentro de um recorte linear – passado, presente e futuro – é o “último” estágio da fruta.

Podre é futuro.

Busco uma confusão temporal e um anacronismo como possibilidade de quebrar a binariedade de Vida e Morte.
Mida e Vorte.

O que está em decomposição?

O que está estragado?

O que está deteriorado?

O que está putrefado?

Passada, Fresco, Podre

Podre, Fresca, Passado

Fresque, Passade, Podre

Daniel Lie. Non-Negotiable Condition (Condição Inegociável. 2021. Vista de instalação, Metabolic Rift, 2021. ©️ Berlin Atonal. Fotografia: Helge Mundt
Daniel Lie. Non-Negotiable Condition (Condição Inegociável). 2021. Vista de instalação, Metabolic Rift, 2021. ©️ Berlin Atonal. Fotografia: Helge Mundt
Daniel Lie. Non-Negotiable Condition (Condição Inegociável). 2021. Vista de instalação, Metabolic Rift, 2021. ©️ Berlin Atonal. Fotografia: Helge Mundt

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